sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Selma e Coco, que gira!



Foto: Imagem Google

Há algum tempo atrás, um viajante que veio da Guiné Bissau, país do norte da África Ocidental, um senhor de estatura mediana, cabelos brancos que pareciam algodão de tão fofinhos, com um olhar tranquilo, daqueles que libertam a alma, ele era um Griô. Você sabe o que é um Griô? É um guardião das memórias que andava ouvindo e contando histórias, um músico ambulante que chegou ao Brasil para uma atividade, aprender novas histórias e formar novos contadores a partir de suas próprias vivências e de sua cultura. Pois o Brasil é negro tal qual a África e temos que aprender a guardar e valorizar cada pontinho de um canto a outro deste mundo. À medida que ele ensinava, ele também aprendia. Para seu Aulé, tinha muita importância ouvir e multiplicar essas informações, com um pandeiro nas mãos começava a cantoria, e seguia oralizando.
Chegando a Pernambuco, precisamente em Olinda conheceu a história de Selma Ferreira da Silva. Queria saber tudinho, saia de porta em porta ouvindo, muito lindo de olhar a generosidade com que se direcionava para os mais velhos e para os mais novos. E dizia apontando para as crianças que brincavam e aguardavam para ouvir suas histórias. Essas crianças negras, curiosas e talentosas, elas adoram dançar e ouvir belos contos, não é muito diferente do nosso fazer!
E seguiu em direção às crianças, que se organizaram formando um grande círculo. Seu Aulé já chegou batendo palmas, pank,pank. pank,pank ô de casa! Eu vim vos visitar. Ô de casa, vim trazendo uma linda história que agora vou contar. As crianças olhavam encantadas, os olhos brilhavam de tão maravilhados. E soltou a melodia.
Há trinta anos passados
Morava em Mustardinha
No meio de tanta gente
Não conheceram Selminha
Hoje eu moro em Olinda
O povo me adotou
Me chamam rainha do coco
O povo é meu amor.

A nossa personagem é a Selminha nasceu em Vitória de Santo Antão interior de Pernambuco, onde aprendeu com seu avô e avó as cantigas. A menina esperta decorava tudo que era letra, enchiam de orgulho seus familiares. Seu avô sempre dizia “Selminha um dia vai girar o mundo cantando Coco”! O ritmo não saia da cabeça da menina, que tinha como marcação um pandeiro e um ganzá e muitas palmas. Era preto de um lado, preta do outro, o chinelo de couro batendo no barro do chão, o candeeiro a gás e os vaga lumes iluminando a negrada nas comemorações juninas e momentos de reuniões familiares. A criançada adorava era tudo muito divertido, as mulheres de saias longas com belas estampas e flores que adornavam seus cabelos crespos. Seu Aulé percebendo que já tinha ganhado a atenção de todos ao seu redor, continuou a contar a história de Selminha.  
Aos dez anos, mudou-se com a família para Recife, casou-se cedo, teve dois filhos e ficou viúva, adotou quatorze sobrinhos, tendo que garantir o sustento de seus filhos e lar. Residiu durante quinze anos no Bairro da Mostardinha, saindo de Recife para morar em Olinda. Então foi vender tapioca, e não esquecia suas vivências, quando o movimento estava fraco para atrair os clientes começava a cantar o coco, que ouvia quando criança.  A clientela ia aumentando, e foi ficando conhecida como “Dona Selma do Coco” a moreninha do dente de ouro. Para ela, a força de sua identidade negra foi chegando de acordo com o seu sucesso e foi descobrindo outras histórias sobre o Coco de Roda. Que era dança e festa de preto, herança dos nossos ancestrais que foram retirados abruptamente de sua terra natal.
Já nos anos noventa, a juventude vibrava com o movimento Manguebeat, e a música da Selma tapioqueira fazia o maior sucesso, todos queriam ouvir, então foi recebendo convites para cantar em festas íntimas,e começou a produzir fitas cassete artesanalmente e vendia. Em mil novecentos e noventa e seis, foi no show do Abril pro Rock que se apresentou para um enorme público fazendo um sucesso gigantesco com a música da Rolinha.
Da rolinha? As crianças se entreolharam com sorrisos de um canto a outro da boca.
Sim, da rolinha é um pássaro respondeu seu Aulé, deixando a criançada ainda mais curiosa.
No começo ela tinha vergonha de cantar a música que apresentava um duplo sentido. Mas, que vergonha de nada, o avô tinha razão, ela começou a ganhar o mundo cantando Coco de roda, a música fez maior sucesso no Carnaval. E era um tal de:
Eu vi um sapo correndo de lá
A menina que chorou
Quando olhei pra gaiola eu vi
A minha rola que voou
Oi corre, corre, corre
Pega, pega minha rola.
"avôa", "avôa", "avôa"
Pega, pega minha rola.
Eu não vou na sua casa
Prá você não ir na minha
Que tu tem a boca grande
Vai comer minha galinha     
Até a poeira levantar e a cantiga foi parar na boca do povo, e os convites foram surgindo gravou seu primeiro CD, Minha História no ano de mil novecentos e noventa e oito em parceria com o filho Zezinho. O sucesso foi tão grande que ganhou o Prêmio Sharp, sendo o prêmio da música popular brasileira, e nada mais popular que uma música afro-brasileira.
Seguindo com a música, cantou no Festival Lincoln Center, em Nova York, e no Festival de Jazz de Nova Orleans, como também fazendo shows na Alemanha, França, Bélgica, Espanha, Suíça e Portugal. Durante a excursão pela Europa, atendendo a um convite do Instituto Cultural de Berlim, gravou o disco Heróis da Noite, ao lado de cantores africanos. E o tempo ia passando e mais certeza e força teve o presságio de seu avô. Como prova de sua genialidade musical foi considerada Patrimônio Vivo de Pernambuco, uma forma de preservar os saberes dos mestres e mestras, patrimônio imaterial da cultura popular.

Os olhos de seu Aulé brilhavam, e ele começou a tocar o pandeiro, vamos acompanhá-lo nas palmas, ele fazia. Êeeeeeeeee,hahahahahahahaha,thaaaaa, thaaaaa um improviso que Selminha baluarte da cultura popular desenvolveu para organizar mentalmente a próxima música. E começou a bater com os pés, e o som que saía de seus pés lembrava o partir do coco. Simbora meu povo, e soltou a música. O norte abalou com minha despedida, e cumprindo o seu legado Selma foi para o Orun com oitenta e cinco anos, deixando uma cabaça repleta de saberes e fazeres a serem espalhados por todo o mundo.

Em memória da maior fomentadora da cultura popular, Dona Selma do Coco. 

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