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Alzenide Simões |
Enquanto muita gente ainda torce o nariz ao ouvir a palavra “cota”, a ativista Alzenide Simões não só defende a medida, mas a considera uma reparação histórica para o povo brasileiro. Ela também apoia a criação de novos significados para a presença dos negros na história e destaca a importância de um trabalho unificado entre diversos setores da sociedade para erradicar o preconceito. Recifense de 47 anos, licenciada em História, com participação em movimentos sociais, Alzenide comprou a briga não só pela igualdade de gêneros, mas pela equidade racial. Acompanhe as ideias dessa ativista sobre o tema.
Movimento Mulher 360 – Como e quando a senhora começou a atuar pela valorização da mulher negra?
Alzenide Simões - Na década de 80, conheci o Movimento Negro Unificado (MNU) da minha cidade, fui convidada a participar das reuniões do grupo. Nesta época, estava no segundo grau na escola e passava por um processo de negação da minha identidade, que infelizmente ainda é vivenciado por muitas mulheres negras. Passei por um momento de baixa autoestima e desagrado com minha imagem, com minha raiz.
No Movimento Negro Unificado encontrei pessoas felizes com suas características e experiências. Isto me ajudou a me entender melhor. Passei a estudar mais e ingressei na faculdade de História para compreender a trajetória do povo negro. Minhas opções profissionais e pessoais foram desencadeadas por meio desse processo de consciência racial.
MM360 – Na opinião da senhora, que fatores contribuem para a discriminação racial nos dias de hoje?
AS – Embora tenha crescido o tempo de estudo entre as mulheres negras nos últimos anos (de 4,2 anos em 1993 para 6,4 em 2006), ainda precisamos avançar no que diz respeito à equidade de gênero. EM 2010, 56,4% das vítimas de arma de fogo no Brasil foram jovens de 21 anos, em média, dos quais a maioria é composta por negros e negras. Os altos índices fizeram com que políticas específicas de valorização racial fossem criadas no Brasil para reduzir violências desta natureza.
Vez por outra, ouço pessoas dizerem que o próprio negro é quem se discrimina. Ora, em uma sociedade que repete o tempo inteiro que a negritude é algo negativo, o processo de auto rejeição é grande. Apenas 7,8% dos brasileiros e brasileiras se identificam enquanto negro, segundo dados do IBGE. Não é à toa que hoje temos leis sancionadas e que devem ser cumpridas à risca para erradicar o preconceito racial. É preciso um trabalho unificado, e não apenas de grupos isolados para que a mudança aconteça.
MM360 – Qual a percepção da senhora sobre a forma que as mulheres negras são retratadas na escola?
AS – De modo geral, na década de 90, os livros didáticos traziam as mulheres negras como a Tia Anastácia, aquela figura da ama de leite, com seios enormes e que fica na cozinha fazendo quitutes maravilhosos. Ou então, no caso dos meninos, como o Saci Pererê, o pretinho sem perna, reforçando que a criança negra seja alvo de chacotas na escola. Isso sem citar Domingos Jorge Velho, o capitão do mato que assassinou Zumbi dos Palmares e tantos outros negros, mas que, no entanto, era tido como herói nacional pelos livros escolares.
Atualmente, existe um trabalho intenso para dar novo significado à presença dos negros na História ensinada em nossas escolas, exigindo do Governo Federal essa mudança. Chamo atenção para a Lei 10.639, que exige o ensino da história e cultura afro-brasileira a nossas crianças. A partir dela, mais trabalhos e projetos que promovem a educação com enfoque racial e de gênero estão sendo produzidos e divulgados. Temos o exemplo de Tereza de Quariterê, uma grande líder, uma revolucionária contra a escravidão, mas que não é citada no material escolar. Por isto a lei, para que esta e outras mulheres negras tenham sua importância reconhecida. Sem dúvida estamos avançando, embora a passos lentos, mas já podemos visualizar melhoras para o futuro.
MM360 – As mulheres negras ganham, em média, menos que 50% do salário de um homem branco, segundo o Ministério do Trabalho. Além da desigualdade de gênero, existe a racial. Como reverter estes números e aumentar a presença delas nas empresas?
AS – Elas não têm uma remuneração justa, embora sejam muito cobradas a apresentar resultados e provar competência. Nossa classe atual é oriunda de um passado de colonização e exploração. É difícil ver essa nova geração viver a violência corporativa que a minha presenciou, mas com outra roupagem.
Acredito que teremos mais mulheres negras em cargo de liderança quando alcançarmos o espaço que reivindicamos hoje. Para isto, as cotas são essencialmente necessárias na equidade de direitos. O processo histórico comprova uma defasagem do povo negro em relação ao branco. Cota, portanto, é um ato justo. Estamos lutando por oportunidades. Se não houver esta medida, estaremos sempre num escala defasada e com percentuais a menos. Defendo-as em todos os níveis, não apenas a acadêmica, mas em todas as esferas sociais.
MM360 – Quais os maiores desafios para os movimentos sociais que reforçam questões de raça e gênero para a população?
AS – Existe uma discussão superficial sobre raça na mídia e nas empresas. Por exemplo, diz-se que é muito bom ter uma negra na sua companhia, cumprindo assim as cotas. Mas queremos mais do que isso. Devemos caminhar pelo campo dos direitos e da verdadeira conscientização para mudar a realidade. A maioria dos brasileiros tem participação negra ou indígena em sua árvore genealógica. Isso precisa ser reforçado para que todos se identifiquem semelhantes. E, dessa forma, diminuam as disparidades para com a mulher negra.
Hoje, já temos o Ministério da Igualdade Racial (Sepir), fundações culturais e organismos institucionais que têm como vertente a questão racial. São conquistas do povo somadas ao longo do tempo. A organização popular da mulher negra, em especial, já existia desde a colonização, quando as quituteiras compravam a alforria de outros negros nos portos, com o dinheiro de suas vendas. Devemos continuar lutando por esse empoderamento.
MM360 – Quais as perspectivas de melhora sob o olhar do movimento negro?
AS - Sou otimista em relação às mudanças sociais. Nos últimos dez anos, o número de negros e pardos no ensino superior saltou de 19% para 38%. É sinal de melhoras, mas não devemos nos acomodar. As cotas precisam existir, em todos os níveis, para chegarmos lá. Então, teremos discussões de forma igual, sem desproporcionalidades. E vamos manter o trabalho de conscientização até não precisarmos mais de medidas de inclusão, que são reparações históricas para o povo brasileiro.
Fonte: http://movimentomulher360.com.br/2013/08/luta-pela-valorizacao-da-mulher-negra/
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