(Lectures on Liberation)
O texto foi traduzido pela
Prof. Jaque Conceição para o Site Kilombagem
Preâmbulo
Em 1969, Angela Yvonne
Davis era uma jovem de 23 anos. Negra, comunista e doutora em Filosofia pelo
Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt/Alemanha. Na Europa, ela estudou com
Theodor Adorno, um dos intelectuais mais influentes da filosofia moderna alemã.
O texto a seguir trata da transcrição da sua aula inaugural em seu curso sobre
filosofia moderna. Nessa aula, o auditório com capacidade para 2500 pessoas do
campus da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA – EUA) lotou. Angela
Davis, uma jovem professora de filosofia, militante do Partido Comunista e
atuante nos Panteras Negras, demonstrou brilhantemente nessa aula inaugural sua
visão de mundo e interpretação filosófica da realidade dos negros
norte-americanos. Temas como: religião, identidade, subjetividade, liberdade
dão o tom do seu brilhantismo e capacidade singular de ler e descrever o mundo
naqueles anos de luta e resistência.
Muitos de nós a conhecemos
no Brasil por meio de seus textos sobre o feminismo negro, mas o texto abaixo, publicado
aqui pela primeira vez em português, mostra que suas indagações são claramente
filosóficas, uma filosofia preta e revolucionária. Para além do feminismo
negro, os escritos de Angela Davis mostram que é preciso construir a libertação
dos indivíduos pretos, mas sem perder a noção de classe.
Tradução: Jaque Conceição
Revisão textual: Regina
Maria da Silva
INTRODUÇÃO
O texto aqui apresentado é
de autoria da professora Angela Davis. É sua palestra inicial para o curso Os
Temas Filosóficos Recorrentes na Literatura Negra, seu primeiro curso na UCLA,
durante o outono de 1969, no momento em que começava sua atuação como professora
assistente de Filosofia da UCLA. A primeira de duas palestras foi apresentada
no Royce Hall para um público de mais de 1.500 colegas interessados. No final
da palestra, a Professora Davis foi bastante ovacionada pelo público de pé.
Foi, pensamos uma reivindicação de liberdade acadêmica e educação democrática.
As palestras fizeram parte de uma tentativa de trazer à tona a história
proibida da escravidão e da opressão do povo preto, e colocar essa história em
um contexto filosófico esclarecedor. Ao mesmo tempo, eles são sensíveis,
originais e enfáticos: retratam o trabalho de uma excelente professora e
verdadeira estudiosa.
A professora Davis agora é
uma prisioneira da sociedade que deve congratular-se com seus talentos,
honestidade e a contribuição feita para compreender e resolver o problema mais
crítico dessa sociedade – a divisão entre os seus opressores e oprimidos.
Primeiro, ela foi atacada pelo reitor da Universidade da Califórnia, que tentou
demiti-la afirmando ser ilegal sua participação no Partido Comunista. Quando
essa tentativa foi anulada pelo Tribunal Superior de Los Angeles, o reitor
negou a continuação normal da sua nomeação para um segundo ano, apesar das
recomendações do comitê de avaliação e do Chanceler da UCLA para que ela fosse
nomeada. Durante o verão de 1970, ela foi acusada de sequestro, assassinato e
fuga ilegal para evitar ser processada e colocada na lista dos mais procurados
do FBI. Quando apreendida ela foi mantida sob fiança excessiva, tendo a fiança
negada e, posteriormente, mantida em isolamento de outros prisioneiros.
No primeiro texto, a
Professora Davis assinala que manter uma classe oprimida na ignorância é um dos
principais instrumentos de controle do opressor. Como Frederick Douglas, o
escravo cuja vida e obra ela examina aqui, a Professora Davis também é uma
oprimida educada. Como ele, ela alcançou plena consciência do que é, e tem
aumentado essa consciência em seu próprio povo e nos outros. Não pode haver
dúvida de que sua eficácia na critica a ignorância forçada, na qual ela e seu
povo têm sido mantidos, é o principal motivo para seu banimento e o tratamento
que ela recebe desde então.
Estas são palestras que
tratam da fenomenologia da opressão e libertação. E tem um ponto fundamental:
como pode ser possível, haver milhões de oprimidos, no país que é anunciado
como a sociedade mais livre do mundo. É necessário pensar as causas da opressão
e as formas em que ela se perpetuar; seu significado psicológico para o
opressor e os oprimidos; e o processo pelo qual o último torna-se consciente de
que é possível vencer a opressão. Esta foi a tarefa que a Professora Davis
tomou para si mesma. Ela traz para seu trabalho um fundo filosófico rico, um
intelecto penetrante e o conhecimento nascido da experiência.
Seria talvez inevitável
que a Professora Davis se tornasse um símbolo para grupos e causas
conflitantes. Mas é bom lembrar que por trás do símbolo encontra-se o ser
humano cujos pensamentos são registrados aqui, e que quando ela vai a julgamento
não apenas uma causa humana, mas também uma vida humana será julgada. Nesse
meio tempo, temos orgulho em apresentar estas duas palestras de uma ilustre
colega e amiga. Suas palavras, em todos os lugares, podem contribuir para a
derrota da opressão.
Califórnia, Primavera de
1971. Prof. Matthew Skulicz – Departamento de Literatura Inglesa
Palestras para libertação
– New York, 1971. Comitê para libertação da Angela Davis e todos os
prisioneiros políticos
A ideia de liberdade tem
sido justificadamente um tema dominante na história das ideias ocidentais. O
homem tem repetidamente definido a sua liberdade como algo inalienável. Um dos
paradoxos mais agudos presentes na história da sociedade ocidental é que, enquanto
no plano filosófico, a liberdade foi delineada da forma mais elevada e sublime,
na realidade concreta, para alguns ela é marcada pela forma mais brutal que é a
escravidão. Na Grécia Antiga, onde a democracia teve a sua origem, não se pode
esquecer que, apesar de todas as afirmações filosóficas da liberdade do homem,
apesar da demanda de que o homem só podia realizar-se através do exercício da
sua liberdade como um cidadão da polis: a maioria das pessoas em Atenas não era
livre. As mulheres não eram cidadãs e a escravidão era uma instituição aceita.
Mas lá, houve definitivamente uma forma de racismo presente, e apenas para os
homens gregos foram concedidos os benefícios da liberdade: todos os não gregos
foram chamados bárbaros e por sua natureza não poderiam ser merecedores ou
mesmo capazes de exercerem a liberdade.
Neste contexto, não se
pode deixar de evocar a imagem de Thomas Jefferson e outros fundadores,
chamados a formular os conceitos nobres da Constituição dos Estados Unidos,
enquanto seus escravos viviam na miséria. A fim de não estragar a beleza da
Constituição e ao mesmo tempo proteger a instituição escravidão eles escreveram
sobre pessoas mantidas sob serviço ou trabalho, um eufemismo para a palavra
escravidão. Essas pessoas eram tipos excepcionais de seres humanos, que não
mereciam as garantias e os direitos da Constituição.
O homem é livre ou não é
livre? Deveria ele ser livre ou não deveria ser livre? A história da Literatura
Negra prevê, em minha opinião, uma explicação muito mais esclarecedora da natureza
da liberdade, sua extensão e os limites dos discursos filosóficos sobre este
tema na história da sociedade ocidental. Por quê? Por razões numéricas. Em
primeiro lugar, porque a Literatura Negra neste país e em todo o mundo projeta
a consciência de um povo que tem seu acesso à liberdade negado. Os negros têm
exposto pela sua própria existência as insuficiências da liberdade, não só em
sua prática, como também na sua formulação teórica. Porque se a teoria da
liberdade fomenta a separação entre o conceito e a prática, ou seja, o que se
pensa, não se vivencia então isso significa que algo deve estar errado com o
conceito.
O tema central deste curso
será a ideia de liberdade: como ela é retratada na produção literária do povo
negro. Começando com a vida e os tempos de Frederick Douglass, vamos explorar a
experiência do escravo, do seu cativeiro e, assim, a experiência negativa de
liberdade. O mais importante aqui será a transformação fundamental do conceito
de liberdade como princípio estático da luta para libertação. Vamos passar por W. E. B. Dubois, de Jean Toomer, Richard Wright e John
A. Williams. Intercalando
com as poesias dos vários períodos da História Negra neste país e as análises
teóricas de Fanon e Dubois. Finalmente, vamos discutir alguns poemas de Nicolas
Guillen, um poeta cubano negro, e compará-los com o trabalho dos negros
americanos.
Durante o curso, a noção
de liberdade será o eixo em torno do qual vamos tentar desenvolver outros
conceitos filosóficos. O tipo de filosofia da história que emerge das obras que
estamos estudando será crucial. A moralidade peculiar a um povo oprimido é algo
que terá que ser debatido. À medida que progredimos ao longo do caminho do
desenvolvimento da liberdade na literatura negra, devemos recuperar toda uma
série de temas relacionados.
Antes de entrar no
material, eu gostaria de dizer algumas palavras sobre os tipos de questões que
devemos nos fazer quando nos aprofundamos na natureza da liberdade humana.
Primeiramente, é a liberdade totalmente subjetiva, totalmente objetiva, ou é
uma síntese de ambos os pólos? Deixe-me tentar explicar o que quero dizer. A
liberdade é concebida apenas como uma dada característica inerente do homem? A
liberdade está confinada apenas dentro da mente humana? A liberdade é algo que
permite nos movermos, para agir de uma forma ou fazer uma escolha? Vamos
colocar a questão original como a subjetividade ou objetividade da liberdade da
seguinte maneira: É liberdade a liberdade de pensamento ou a liberdade de ação?
Ou, mais importante, é possível conceber uma forma de liberdade sem a outra?
Isso nos leva diretamente
para o problema de saber se a liberdade é possível dentro dos limites do
cativeiro material. Pode o escravo ser considerado livre de alguma maneira?
Isto traz à mente uma das demonstrações mais notórias que o existencialista
francês Jean-Paul Sartre fez. Mesmo o homem na cadeia, para eliminar a sua
condição de escravidão, luta, mesmo que isso signifique a sua morte. Isto é, a
sua liberdade está estreitamente definida como a liberdade de escolher entre o
seu estado de cativeiro e sua morte. Agora, este é ponto. Certamente, isso não
seria compatível com a noção de liberdade, quando o escravo tem que optar por
sua morte, ele faz muito mais do que destruir sua condição de escravidão, por
que ao mesmo tempo em que ele cria sua própria liberdade, ele acaba com sua
vida. No entanto, há mais a ser dito, quando o escravo toma a decisão de morrer
para ter sua liberdade e assim, na luta pela liberdade, encontra sua morte, ele
nos ensina que, para alguns, vida e liberdade parece ter o mesmo sentido.
A consciência autêntica de
um povo oprimido implica uma compreensão da necessidade de abolir a opressão. O
escravo encontra no final da sua, elementos para a verdadeira compreensão do
que significa liberdade. Ele sabe que isso significa a destruição da relação
senhor-escravo. E, nesse sentido, o seu conhecimento da liberdade é mais
profundo do que o de mestre. O mestre sente-se livre, e ele sente-se livre
porque ele é capaz de dar liberdade a outro individuo. O escravo experimenta a
liberdade do mestre em sua verdadeira luz, à medida que ele entende que a
liberdade do senhor é a liberdade abstrata para suprimir outros seres humanos.
O escravo entende que este é um pseudo conceito da liberdade e neste momento é
mais iluminado do que o seu mestre, por que ele percebe que o mestre é um escravo
de seus próprios equívocos, dos seus próprios erros, da sua própria
brutalidade, do seu próprio esforço para oprimir.
Agora eu gostaria de ir
para o material. A primeira parte de A vida e os Tempos, de Frederick Douglass,
chamada “A vida de escravo”, constitui uma viagem física da escravidão para a
liberdade, que é ao mesmo tempo a celebração e reflexão de uma viagem
filosófica da escravidão para a liberdade.
O ponto de partida para
esta viagem é a seguinte pergunta que Frederick Douglass faz a si mesmo como
uma criança: “Por que eu sou um escravo? Por que algumas pessoas são escravos e
outros mestres?” (página 50). Sua atitude crítica quando ele não consegue aceitar
a resposta habitual – que Deus tinha pessoas negras para serem escravos e
pessoas brancas para serem mestres – é a condição básica que deve estar
presente antes da liberdade poder se tornar uma possibilidade na mente do
escravo. Não devemos esquecer que em toda a história da sociedade ocidental há
uma abundância das justificativas apresentadas para a existência da escravidão.
Tanto Platão e Aristóteles argumentaram que alguns homens nasceram para serem
escravos, pois não nasceram em estado de liberdade. Justificativas religiosas
para a escravidão são encontradas em todos os momentos.
Vamos tentar chegar a uma
definição filosófica do escravo, já dissemos a essência: ele é um ser humano
que, por alguma razão ou outra tem a liberdade negada. Mas não é a essência do
ser humano a sua liberdade? Ou o escravo não é um homem ou em sua própria
existência é uma contradição. Nós podemos descartar a primeira alternativa,
embora não devemos esquecer que a ideologia dominante definiu o negro como
sub-humano. A incapacidade de lidar com a natureza contraditória da escravidão,
a ignorância da realidade imposta é exemplificada na noção de que o escravo não
é um homem, pois se ele fosse um homem, ele certamente deveria ser livre.
Todos nós sabemos das tentativas
calculadas para roubar o homem negro de sua humanidade. Sabemos que, a fim de
manter a instituição da escravidão, os negros foram forçados a viver em
condições que nem animais viveriam. Os brancos proprietários de escravos foram
determinados para moldar as pessoas negras na imagem do ser sub-humano que eles
tinham inventado para justificar suas ações. Um círculo vicioso onde
escravo-propriedade perde toda a consciência de si mesmo.
O círculo vicioso continua
a girar, mas para o escravo, há uma saída: a resistência. Frederick Douglass
parece ter tido a sua primeira experiência desta possibilidade de um escravo
tornar-se livre ao observar um escravo resistir a uma flagelação: “Esse escravo
que teve a coragem de se levantar por si mesmo em primeiro lugar, tornou-se
livre, apesar de juridicamente ser escravo, ‘você pode atirar em mim’, disse um
escravo para Rigby Hopkins, ‘mas você não pode me chicotear’, e o resultado foi
que ele não foi nem chicoteado nem alvejado”.
Já podemos começar a concretizar
a noção de liberdade como ela apareceu ao escravo. A primeira condição da
liberdade é o ato de resistência – resistência física, resistência violenta.
Nesse ato de resistência, os rudimentos da liberdade já estão presentes. E a
retaliação violenta significa muito mais do que o ato físico: é não só a recusa
em submeter-se à flagelação, mas também a recusa em aceitar as definições de
escravo e mestre; é implicitamente uma rejeição da instituição da escravidão,
seus padrões, sua moralidade, um esforço no sentido microcósmico em busca da
libertação.
A forma mais extrema de
alienação humana é a redução ao status de propriedade. Isto é como o escravo
foi definido: algo a ser possuído. Segundo Frederick Douglass, ser escravo era
ter a personalidade absorvida pelo mestre, “nós não tínhamos mais valor que as
vacas e os bois no pasto, não podíamos nem sequer decidir se poderíamos comer
ou não”.
Os negros eram tratados
como coisas, eles foram definidos como objetos. “O escravo era um dispositivo
elétrico”, observa Frederick Douglass. Sua vida devia ser vivida dentro dos
limites dessa objetificação, dentro dos limites da definição do homem branco do
que é ser um homem negro. Forçado a viver como se fosse um dispositivo
elétrico, a percepção do escravo do mundo está invertida. Porque a sua vida é
relegada à de um objeto, ele deve esquecer a sua própria humanidade dentro
desses limites. “Ele não tinha escolha, nenhuma meta, e foi ficando para baixo
a um único local, e deveria lançar raízes lá ou então em lugar nenhum. “O
escravo não tem qualquer determinação sobre as circunstâncias externas de sua
vida. Um dia uma mulher poderia estar vivendo em uma plantação entre seus
filhos, família e amigos; no dia seguinte, ela poderia ser levada a milhas de
distância, sem esperança de alguma vez encontrá-los novamente. A ideia da
viagem perde a sua conotação de exploração, ela perde o entusiasmo de aprender
o desconhecido. A viagem torna-se uma jornada para o inferno, não longe da
coisificação da existência do escravo, mas uma acentuação ainda mais
intensificada da sua não existência humana.
O proprietário de
Frederick Douglass revela-lhe involuntariamente o caminho em direção à
consciência da sua alienação: “Um “nigger não deve saber nada, somente a
vontade do seu senhor, e aprender a obedecê-la”. “O escravo é alienado
totalmente à medida em que ele aceita a vontade de seu mestre como a autoridade
absoluta sobre sua vida; o escravo não tem vontade, não há desejos, ele não
existe; sua essência, seu ser devem encontrar-se totalmente na vontade de seu
mestre”. Isto quer dizer que, em parte, é com o consentimento do escravo que o
homem branco é capaz de perpetuar a
escravidão – quando
dizemos consentimento, no entanto, não é o consentimento livre, mas o
consentimento sob a força e pressão brutal e violenta.
Frederick Douglass
aprendeu a partir de observações de seu dono precisamente como devia combater a
sua própria alienação: “Muito bem, pensei, conhecimento incapacita uma criança
para ser um escravo: a partir desse momento, eu entendi o caminho direto da escravidão
para a liberdade”. Se olharmos atentamente as palavras de Frederick Douglass
poderemos detectar o tema da resistência, mais uma vez. Sua primeira
experiência concreta da possibilidade de liberdade dentro dos limites da
escravidão vem quando ele observa um escravo resistir a uma surra. Agora, ele
transforma esta resistência em uma resistência da mente, na recusa em aceitar a
vontade do mestre e em determinação para encontrar meios independentes de
avaliar o mundo.
Assim como o escravo tem
usado a violência contra a violência do agressor, Frederick Douglass usa o
conhecimento de seu proprietário, para ir contra ele: ele nos diz que o
conhecimento impede o homem de ser escravo. Resistência, rejeição, em todos os
níveis, em todas as frentes, são elementos integrantes da viagem em direção a
liberdade. Alienação vai dando espaço para a consciência através do processo de
conhecimento.
Na luta contra a
ignorância, ao resistir à vontade de seu mestre, Frederick Douglass, apreende
que todos os homens devem ser livres e, portanto, aprofunda seu conhecimento da
escravidão, do que significa ser um escravo, o que significa ser contraparte
negativa de liberdade. “Quando eu tinha uns 13 anos de idade, e tinha
conseguido aprender a ler, cada aumento de conhecimento, especialmente qualquer
coisa respeitando os estados livres, era um peso adicional à escravidão. Era
uma realidade terrível e eu nunca mais seria capaz de aceita-la em meu espírito
jovem, que queria ser livre”.
Sua alienação torna-se
real, vem à tona e Frederick Douglass vai experimentar existencialmente tudo
que torna impraticável a liberdade, por estar vinculada a um estado de
não-liberdade materialmente falando, ao mesmo tempo encontrar quais elementos
mentais para a libertação. A tensão entre o subjetivo e o objetivo, é o que
cria o impulso em direção à liberação total. Mas antes que esse objetivo seja
alcançado toda uma série de fases deve ser percorrida.
O escravo, Frederick
Douglass, portanto, transcende mentalmente sua condição para a liberdade. Aqui
reside a consciência da alienação. Ele vê a liberdade concretamente como a
negação da sua condição – que está presente no próprio ar que respira. “A
liberdade, como a criação inestimável de cada homem, é um direito que nos é
dado, desde a nossa primeira respiração, ainda na barriga de nossas mães. Está
em cada som, em cada objeto, mas sua ausência me atormenta mostrando-me minha
miséria, o quão horrível e desolada era minha condição. A liberdade estava em
tudo: eu a ouvia sem nada ter ouvido. Não estou exagerando quando digo que ela
olhou para mim em cada estrela, sorriu em cada calmaria, respirou em cada vento
e me banhou em cada tempestade”.
Ele chegou a um verdadeiro
reconhecimento de sua condição. Este reconhecimento é ao mesmo tempo a rejeição
da referida condição. A consciência da alienação implica na recusa absoluta a
aceitar a alienação. Mas na situação do escravo, por sua natureza muito
contraditória, é impossível: o conhecimento não traz felicidade, nem traz a
verdadeira liberdade – traz a desolação e a miséria, enquanto o escravo não
conseguir ver um caminho concreto para fora da escravidão, ele sofre com ela.
“Eu era ignorante, e resolvi saber, mas o conhecimento só aumentou minha miséria”,
diz Douglass.
Nesta estrada para a
liberdade, Frederick Douglass experimenta a religião como um reforço e
justificativa para o seu desejo de ser livre. A partir da doutrina cristã, ele
deduz a igualdade de todos os homens diante de Deus. Se isso for verdade, ele
infere, os senhores de escravos devem estar desafiando a vontade de Deus e
devem ser tratados de acordo com Sua ira. Liberdade é a abolição da escravidão,
libertação é a destruição da alienação – essas noções recebem uma justificativa
metafísica e um impulso através da religião. Um ser sobrenatural deseja a
abolição da escravatura: Frederick Douglass, escravo e crente em Deus, deve
cumprir a vontade Dele, trabalhando em prol das libertações dos homens
escravizados.
Douglass não era a única
pessoa a inferir isso no cristianismo. Nat Turner retirou uma parte importante
de sua inspiração e da sua fé no cristianismo. John Brown foi outro exemplo.
Nós todos sabemos que a
partir da perspectiva da sociedade dos brancos, a ideia predominante por trás
da junção escravidão e religião era fornecer uma justificativa metafísica, não
para a liberdade, mas sim para a escravidão.
Uma das declarações mais
notórias de Karl Marx é que a religião é o ópio do povo. Isto é – a religião
ensina os homens a estarem satisfeitos com sua condição neste mundo – com sua
opressão -, orientando as suas esperanças e desejos em um domínio sobrenatural.
Um pouco de sofrimento durante a existência de uma pessoa neste mundo não
significa nada em comparação com uma eternidade de bem-aventurança.
Marcuse nos diz muitas
vezes que a religião é o desejo e o sonho de uma humanidade oprimida. Por um
lado, esta afirmação significa, naturalmente, que os desejos se tornam sonhos
projetados para uma esfera sobre a qual os seres humanos não têm controle: um
reino imaginário. Mas, por outro lado, temos de nos perguntar: há alguma coisa
implícita na declaração de Marcuse sobre a noção de sonhos e desejo de uma
humanidade oprimida? Pense por um momento: necessidades e desejos são
transformados em sonhos através do processo das religiões, porque parece não
termos mais esperança neste mundo (e é justamente esta a perspectiva de um povo
oprimido, a falta de esperança). Mas o que é importante, é que esses sonhos
sempre retornam ao seu status original – a realidade material da terra. Há
sempre a possibilidade de redirecionar esses sonhos e desejos para o aqui e
agora.
Frederick Douglass foi
redirecionado a esses sonhos; Nat Turner colocou os sonhos dentro do âmbito do
mundo real. Assim, não pode haver uma função positiva da religião, porque sua
própria natureza é satisfazer as necessidades urgentes das pessoas que são
oprimidas. (Estamos falando apenas da relação do povo oprimido com a religião,
não a tentativa de analisar a noção de religião em si e para si). Não pode
haver uma função positiva da religião. Tudo o que precisa ser feito é dizer:
vamos começar a criar essa eternidade de bem-aventurança para a sociedade
humana neste mundo. Vamos converter a eternidade na história.
Por que os negros não
mudam a história? Por que houve um esforço calculado por parte do branco,
delimitando o espaço do negro, reforçando a noção e a mentalidade de escravo
com um tipo especial de religião que serve aos interesses dos senhores brancos,
servindo para perpetuar a existência da escravidão. O cristianismo foi
utilizado para fins de lavagem cerebral, doutrinação e pacificação dos negros
escravizados.
Kenneth Stampp em seu
trabalho “The Peculiar Institution” discute extensivamente o papel da religião
na criação de métodos de doutrinar as pessoas negras, de suprimir a revolta
potencial. Na primeira parte, os africanos não foram convertidos ao
cristianismo, porque isso poderia ter dado aos escravos uma reivindicação de
liberdade. No entanto, as várias colônias que utilizavam mão-de-obra escrava,
aprovaram leis no sentido de que os cristãos negros não se tornariam
automaticamente homens livres em virtude de seu batismo. Stampp formula as
razões pelas quais os senhores brancos finalmente decidiram deixar escravos
entrarem através das portas sagradas da cristandade: “Por meio de instrução
religiosa, conhecimento bíblico que os escravos deveriam obedecer seus mestres,
eles ouviriam dos castigos aguardando o escravo desobediente, ouviriam sobre a
recompensa para o serviçal fiel e que, no dia do juízo final, Deus iria lidar
com a imparcialidade para com os pobres e os ricos, o homem negro e o branco,
sempre a partir de sua fidelidade e temeridade à Deus e ao cristianismo”.
Assim, as passagens da
Bíblia que enfatizam obediência, a humildade, o pacifismo, paciência, foram
apresentados ao escravo como a essência do cristianismo. As passagens, que por
outro lado, falavam sobre a igualdade, a liberdade, e aqueles que Frederick Douglass
foi capaz de descobrir porque diferentemente da maioria dos escravos, ele
aprendeu a ler sozinho – estas foram eliminadas dos sermões para os escravos,
ministrados aos domingos. Uma versão com muita censura do cristianismo foi
desenvolvida especialmente para os escravos. Um escravo piedoso, portanto,
nunca teria atingido um homem branco, seu mestre estava sempre certo, mesmo
quando ele estava humanamente errado. Este uso da religião, ensinava aos homens
negros que eles não eram homens por completo; tais passagens bíblicas foram
usadas para abolir o último remanescente de identidade que o escravo possuía.
Mas, em longo prazo, eles não foram bem-sucedidos como nos mostraram Frederick
Douglass, Gabriel Prosser, Denmark Vesey, Nat Turner e inúmeros outros que
transformaram o cristianismo contra os missionários. O Antigo Testamento foi
especialmente útil para aqueles que planejaram revoltas – os Filhos de Israel
foram libertados da escravidão no Egito por Deus – mas eles lutaram e lutaram,
a fim de cumprir a vontade de Deus, e a resistência foi a lição aprendida a
partir da Bíblia.
A reação de Frederick
Douglass à revolta de Nat Turner é reveladora, como nos conta Douglass: “A
insurreição de Nat Turner havia sido debelada, mas o alarme e terror que originaram
não haviam diminuído. A cólera foi, então, em direção a seu país e eu me lembro
de pensar que Deus estava com raiva dos brancos por causa de sua maldade contra
os escravos. É claro que era impossível para mim não me envolver com o
movimento da abolição, principalmente depois que o movimento foi apoiado pelo
Todo-Poderoso”.
Eu gostaria de terminar
aqui, apontando para a essência do que eu tenho tentado atravessar hoje. A
estrada para a liberdade, o caminho da libertação é marcado pela resistência em
cada encruzilhada: a resistência mental, resistência física, resistência
direcionada para a tentativa de obstruir o caminho do cativeiro. Acho que
podemos aprender com a experiência do escravo. Temos de desmascarar o mito de
que as pessoas negras eram dóceis e aceitar que o negro resistiu desde que
pisou nessa terra. Nenhum individuo que tenha conhecimento e consciência de si
mesmo preferirá a escravidão à liberdade. Nem o individuo mais temente a Deus.
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